26 de janeiro de 2024

Drops #11 - Dragon Quest e o RPG de Mesa


Desde o início da indústria de jogos, os RPGs estão presentes. Com vários títulos de sucesso ao longo dos anos, o gênero nasceu, cresceu, se desenvolveu, inovou, estagnou, renasceu e se consolidou como um dos grandes pilares dos jogos digitais. Hoje em dia, temos jogos de ação, jogos de puzzle, e até jogos de ritmo com características e elementos de RPGs. 

No meio de toda essa história, existe uma série de jogos que nasceu no Japão, virou um fenômeno social, e dura até hoje como uma das franquias mais rentáveis e amadas dos jogos: Dragon Quest. Nessa postagem, eu proponho explorar quais são as principais características da série, o que significa se tornar um fenômeno social e o que isso implica para a série e como os sucessos e fracassos da série podem aplicar ao RPG de mesa e à sua mesa de jogo.


A ascensão de Dragon Quest




É bem fácil explicar porque Dragon Quest teve um sucesso inicial tão estrondoso. Para início de conversa, o jogo, apesar de sua complexidade comparada aos jogos da época, era extremamente acessível. A clássica e conhecida arte de Akira Toriyama, um dos autores de mangá mais conhecidos do Japão e responsável pelo fenômeno Dragon Ball, despertava o interesse inicial dos potenciais jogadores.

Dragon Quest também era um dos jogos mais complexos do Famicom durante sua época. Naquele tempo, se você quisesse um jogo mais profundo e complicado, era necessário comprar um computador, numa época em que eles eram caros e pouco acessíveis. Porém, mesmo sendo muito mais complexo que a média, Dragon Quest também era razoavelmente acessível, focando muito mais na exploração e tempo de jogo em vez de focar em uma jogabilidade focada na ação Arcade como a maioria dos seus concorrentes da época. Adicione a esse conjunto uma trilha sonora bem trabalhada, criada pelo maestro e compositor Koichi Sugiyama, que continha uma musica tema tão memorável que poderia facilmente ser usada como Hino do Japão.


Com o sucesso do primeiro jogo, várias sequências surgiram. Dragon Quest 2 trouxe uma história maior, com mais items, magias e mais importante, mais personagens. Dragon Quest 3 trouxe diferentes classes de personagens (similar ao seu rival Final Fantasy, que tinha sido lançado alguns meses antes no Japão). Dragon Quest 4 focou em uma aventura com múltiplos capítulos focados em diferentes personagens. Cada jogo vendeu muito bem, estabelecendo a reputação da franquia como uma das mais populares da nação.

Apesar da resposta positiva no oriente, Dragon Quest nem de perto teve a mesma resposta quando chegou nos Estados Unidos. O jogo foi publicado pela Nintendo of America (pois a Enix, empresa criadora do jogo, não possuía escritórios fora do Japão) 3 anos após o seu lançamento no oriente e alguns anos após o sucesso estrondoso de Legend of Zelda, o que deixava a empresa ainda mais confiante em seu sucesso. Eles ainda incluiram um mini Guia de Estratégia que detalhava o jogo inteiro como forma de ajudar àqueles que não estavam muito familiarizados com RPGs eletrônicos.

Infelizmente, a maioria dos americanos simplesmente ignorou o título. Os gráficos e o som eram muito primitivos. A interface era densa e complicada. E o mais importante, ele não trazia a mesma quantidade de ação e puzzles que trouxe o sucesso estrondoso ao Zelda alguns anos antes. Em vez disso, o jogo trazia combates de turno lentos e necessitava de horas de grind tedioso afim de prosseguir na história. A Nintendo superestimou a demanda e acabou tendo dando cópias do jogo de graça para quem assinasse a revista Nintendo Power. Pelo menos com isso, o jogo acabou ganhando reconhecimento entre os jogadores, embora toda a pequena tração tenha sido enterrada com o lançamento de Final Fantasy - que trazia gráficos e sons melhores, além de mecânicas mais complexas que eram mais simples de entender.

As continuações, DQ 2 ao 4, foram publicadas nos EUA, porém pela própria Enix. Ao abrir um escritório no país eles puderam acompanhar de perto o lançamento dos jogos, e isso contribuiu bastante com várias melhorias na parte da divulgação e suporte. Mas, mesmo com tudo isso, os jogos não conseguiram ganhar a tração necessária para se tornarem um sucesso: era difícil competir em som, gráficos e interface com os outros jogos que saíam na época para Mega Drive, Turbografx e até mesmo o Super Nintendo.

Apesar disso, Dragon Quest continuou a se proliferar no Japão, com mais duas sequências lançadas para o Super Nintendo, ambas adicionando mais elementos de narrativa e customização de personagens. Em 1997, Final Fantasy 7 popularizou RPGs japoneses no mundo inteiro com seus gráficos coloridos e se tornou um modelo para vários jogos que vieram depois. Por outro lado, Dragon Quest 7, lançado no Japão 3 anos depois, se mostrou mais fraco com seus gráficos simples e quase total ausência de cutscenes em CG. Enquanto o jogo foi um sucesso massivo no oriente, nos EUA ele foi visto com bastante indiferença. Foi somente no lançamento do Dragon Quest 8 que a série começou a fazer um sucesso discreto no ocidente. Dessa vez, o jogo tinha gráficos de anime em cellshading e o suporte de uma crescente indústria de animação japonesa que crescia a todo vapor no Japão. Mesmo assim, as vendas da série não chegavam nem perto das vendas de seu maior rival: Final Fantasy


A chave do sucesso: O Time




Existem muitas razões para isso. Em toda a sua vida, Final Fantasy constantemente tentou se reinventar, mantendo certos aspectos enquanto lançava e explorava novas tendências a cada novo jogo. Por outro lado, Dragon Quest sempre se manteve firme em relação a manter suas tradições. Todos os jogos se passam em mundos fantásticos medievais inspirados na Europa. Todos os jogos tinham o mesmo time chave: Horii, Toriyama e Sugiyama. O que resultou essencialmente em todos os jogos terem o mesmo estilo de narrativa, sistema de combate e estilo musical. Dragon Quest sempre foi uma série que se posicionava bastante para o lado da familiaridade, consistência e nostalgia.

Akira Toriyama, mesmo com um grande número de haters (graças em parte a super exposição de Dragonball), é um excelente monster designer. A maioria das pessoas pensa que a sua arte de seres humanos é seu ponto forte, mas a grande maioria dos fãs de DQ se apega fortemente a identidade única que ele trouxe para os monstros e criaturas existentes na série. A imagem do Slime é tão forte que até pessoas que não jogam video game conseguem reconhecê-lo. Mangás até hoje fazem referência a slimes por causa dele.

O Game Design de Horii também ecoa pela indústria de jogos de várias formas. Em Dragon Quest V, era possível recrutar monstros para o seu time que poderiam lutar por você. Mecânica que foi vista mais tarde nos ultra populares jogos da franquia Pokémon. O fato de que os vários sistemas e designs imaginados por Horii terem se mantido consistentes por mais de 30 anos é realmente impressionante. É praticamente impossível relacionar Final Fantasy 13 com Final Fantasy 1 sem ser em um nível mais profundo, mas se você pegar o Dragon Quest 11, quase todos os monstros são os memos, os sistemas de combate e magia são os mesmos e até os bloops e blips dos efeitos sonoros são os mesmos do Dragon Quest 1.

A musica de Sugiyama possui papel fundamental na formação da série, com um peso tão grande quanto a arte e o game design. Todas as trilhas clássicas dos jogos principais foram compostas por Koichi Sugiyama, um maestro treinado em música erudita com grande experiência em escrever temas orquestrais. O seu principal mérito foi em criar obras extremamente complexas em cima das limitações dos video-games antigos, em uma época onde jogos sequer tinham trilha sonora por conta destas mesmas limitações. Eu particularmente não vou me estender falando bem do Sugiyama, ele é uma figura controversa que ao mesmo tempo exerce admiração pelo seu legado, mas merece pouca consideração não só por suas escolhas políticas/sociais pessoais e também com sua ganância em relação aos jogos de video game.

Os fãs da série costumam dizer que esses três pilares trazem justamente o charme de Dragon Quest. Eu particularmente discordo de parte disso. Na minha opinião, o trio Horii, Toriyama e Sugiyama foram essenciais para tornar DQ o que a série é, dar a identidade e o tempero de como funciona, mas depois de tanto tempo, tantos spin offs bons (DQ Builders, DQ Monsters e DQ Tact) e jogos com toques modernos como o DQ9 e o DQ11, dá pra afirmar que a série é capaz de sobreviver sem eles, sendo grata por terem criado fundações tão fortes.

A Força do Storytelling



Dragon Quest é uma série constantemente ridicularizada por ter histórias pobres e personagens rasos. Enquanto a maioria dos plots não são nada épicos ou revolucionários, isso não significa que eles sejam necessariamente ruins. Quando comparado com outros RPGs, DQ é certamente mais simplista em suas narrativas. Seus plots dificilmente vão além do clichê "Vá até a dimensão negativa e mate o grande cara malvado que vive lá". Similarmente, os personagens também se envolvem muito pouco dentro do plot principal, com backgrounds mínimos e personalidades simplistas. 

Porém, a maior parte da força narrativa de Dragon Quest vem de sua natureza episódica, priorizando o cenário, as pessoas e a sensação de exploração em prol da grande épica aventura principal ou dos protagonistas. O foco é nas pequenas vilas que você visita, nas pessoas que você conhece pelo caminho e nas descobertas feitas conforme os protagonistas viajam pelo mundo. Como heróis, derrotar o cara malvado acaba ficando em segundo plano pois há casais desafortunados que precisam se reencontrar novamente, ou quando há viúvas vingativas de coração partido ou ainda quando há reinos que se tornaram inimigos por conta de um mal entendido entre seus governantes. Enquanto há um mérito em ter personagens como Tidus e Squall (de Final Fantasy), que carregam personalidades fortes e passados enigmáticos, eles também podem afastar jogadores que por um motivo ou outro não se identifiquem ou não se agradem com eles. Em Dragon Quest você é o protagonista. Seus amigos são quem você quer que eles sejam. É sobre você interagindo com o mundo e conhecendo os personagens dentro dele e não sobre melodramas bobos e cutscenes super longas. 

É um estilo de jogo que se aproxima muito do próprio Dungeons & Dragons, onde cada sessão os jogadores consomem um pouquinho daquele mundo, interagem com NPCs, completam pequenas missões e no final salvam o mundo.

Dragon Quest e o RPG de Mesa


Vou aproveitar a chance para lembrar de que este humilde blog já possui 2 artigos relacionados a Dragon Quest e RPG de mesa. O primeiro se encontra aqui e fala sobre aventuras com clima de videogame, onde eu falo muito por alto qual a vibe de Dragon Quest. O segundo está aqui, e tenta descrever um pouco de um dos meus animes preferidos, o Dragon Quest: Dai no Daibouken.

Dito isso, eu gostaria de destacar cinco pontos que acho muito importantes na série e que fazem parte do seu charme e que qualquer mestre/jogador que queira entrar no clima de DQ podem prestar atenção.

O primeiro ponto é o fato de que os protagonistas de DQ é em suma um jogo sobre idealismo. Os protagonistas sempre são heróis, sejam eles escolhidos ou acidentais. Não há muito espaço para a maldade ou para personagens de índole dúbia ou anti-heróis. Você pode ser filho de um herói lendário ou ser só um pequeno pescador de uma vila que ainda assim vai atender o chamado do heroísmo. Seja do mundo, seja de uma vila remota ou seja da sua avó, você vai estar lá, não importando o quão pequeno ou grande seja o problema.

O segundo ponto é que somente os protagonistas podem resolver os problemas do mundo. Em DQ, os protagonistas nunca atuam como coadjuvantes em um plot maior. Não existe alguém mais poderoso que vai fazer as coisas por você. Inclusive, quase todos os melhores NPCs de Dragon Quest são personagens simples, fracos mas de imenso carisma. Por isso é importante que o mestre sempre facilite esse protagonismo. Todos os poderosos heróis que mudaram o mundo ou estão mortos ou aposentados, eles podem servir até como mentores, mas a luta mesmo será dos jogadores. Os vilões, por outro lado, devem ser poderosos, a idéia de um Rei Demônio voltando à vida deve ser assustadora e catastrófica, precisando ser impedida a qualquer custo.

O terceiro ponto é que os jogadores são, sobretudo, heróis. Cabe a eles não só cumprir a missão principal, mas também resolver os problemas das pessoas ao seu redor, por menor que eles sejam. Um herói nunca fica sem tempo para ajudar uma sereia que busca um amor perdido, ou para investigar um estranho cachorro que vaga pelas ruas à noite. A verdade é que ao ajudar todo mundo, os heróis dão passos em relação ao destino final de vencer o grande mal. Afinal, a sereia depois de ser ajudada pode usar sua magia para acabar com os redemoinhos que bloqueavam a navegação e o estranho cachorro pode ser a princesa desaparecida do reino que foi amaldiçoada e que pode se tornar uma poderosa aliada política.

O quarto ponto é que um dos pilares de Dragon Quest é a sua bobice. Não no sentido negativo, mas no sentido carismático. Os roteiristas de DQ não hesitam em fazer piadas bobas. Desde um inimigo "homem-dinossauro" que vive em uma biblioteca chamado Professauro, até missões como recuperar a dentadura do rei que não pode ser visto sem dentes ou uma bruxa que vive em um quadro chamada Dory Grey. As possibilidades são infinitas, então a recomendação é que você como mestre coloque o seu chapéu de Tiozão do Pavê e capriche nas piadinhas para quebrar a seriedade quando menos os jogadores esperarem. 


O quinto e último ponto, é que ao mesmo tempo em que você deve ser bobo, é importante que também seja sério. Dragon Quest também aborda temas como papéis de gênero, xenofobia, males da guerra e capacitismo de maneira leve, levantando discussões que são importantes na sociedade japonesa, o principal grupo que ele tenta retratar. Então aqui é preciso ao mesmo tempo ter ousadia para colocar os temas em sua história, mas ao mesmo tempo é preciso bom senso para que as discussões não se percam nem fiquem deselegantes e vazias.


2 comentários:

Mi disse...

Essas pessoas que pegara o jogo de graça na revista devem ter ficado ricas vendendo depois! Gosto de DQ e dos monstrinhos, mas fique sabendo que a história de Squall não é melodrama u.u

Bruno Baère disse...

Muito bom!

O Dragon Warrior 1 foi o único que joguei bastante até chegar no final, mas não consegui passar do chefão, não queria usar save state na época e acabei perdendo o save junto com o HD.

Já o DQ8 joguei em duas oportunidades: no PS2, depois de anos com o jogo original na estante, resolvi pegar depois de fechar o Ace Combat 5 e estava jogando em paralelo com o Final Fantasy XII; no 3DS depois de perceber que estava cada vez menos indo pra casa dos meus pais onde o PS2 ficou. Se pá foi um dos últimos jogos digitais de 3DS que comprei na store antes da Nintendo encerrar o suporte.

Agora to com o Infinity Strash e o DQ XI instalados pela Steam, vamos ver se não vou me decepcionar e conseguir focar em jogá-los.

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